A ascensão de candidatos e ideias de direita entre os setores mais pobres da população brasileira não é um fenômeno recente, mas ganhou força nos últimos anos. É um processo que desafia explicações simplistas. O que leva alguém que depende de serviços públicos básicos, que enfrenta jornadas de trabalho precárias e que sente na pele a instabilidade do país a abraçar justamente o discurso político que promete desmontar essas estruturas?
Diversos autores tentaram responder a essa questão. Entre eles, Jessé Souza oferece uma leitura que, embora polêmica, lança luz sobre aspectos fundamentais da subjetividade popular. Ele aponta que a adesão à direita não pode ser explicada apenas por fatores econômicos, mas pela humilhação cotidiana, pela busca de dignidade e pertencimento e pela internalização de discursos que atribuem o fracasso à moral do indivíduo, e não à estrutura social.
É nessa dinâmica que o neopentecostalismo ocupa espaço crescente. Mais do que uma fé, ele oferece um modo de interpretar o mundo: o sucesso é sinal da bênção; o fracasso, consequência da falta de fé ou da ação de forças malignas. Para o trabalhador que não prospera, a resposta oferecida não está nas reformas estruturais, mas numa batalha espiritual que se desenrola entre o púlpito e o espelho. A responsabilidade do fracasso é individualizada — e, em muitos casos, espiritualizada. Como bem apontam teólogos críticos e cientistas sociais, essa teologia da prosperidade, ao despolitizar o sofrimento, cumpre uma função funcional à manutenção da ordem social desigual.
No outro extremo desse cenário, a elite econômica se move com discrição e eficácia. Controla orçamentos, molda legislações, financia campanhas e opera sua influência em gabinetes, editoriais e púlpitos. Com a retórica da eficiência e do empreendedorismo, empurra o país para reformas regressivas, desmantela direitos e naturaliza um Brasil onde o CLT é tratado como privilégio e o trabalho informal como prova de coragem. Os dados do IBGE de 2023 indicam que 66% dos trabalhadores por conta própria vivem com até dois salários mínimos. A informalidade não é um projeto de autonomia, mas uma necessidade disfarçada de escolha.
Essa elite se reinventa historicamente. Já foi senhorial, escravocrata, industrial e agora se apresenta como inovadora e tecnológica. Porém, sua relação com o Estado continua marcada por uma lógica extrativista: captura recursos públicos, isenções fiscais e regulações favoráveis. Enquanto isso, cobra austeridade para o povo.
O discurso hegemônico transforma o camelô endividado em herói nacional e o trabalhador formal em preguiçoso acomodado. Essa inversão moral, alimentada por redes sociais, campanhas publicitárias e discursos religiosos, serve como blindagem simbólica para uma estrutura econômica que concentra renda e poder. Exemplar disso é a narrativa repetida por influenciadores religiosos e empresários midiáticos: “Se você está fracassando, o problema está em você — não no sistema”.
É inegável que há, por trás dessas escolhas políticas, uma necessidade legítima de reconhecimento. Em comunidades vulneráveis, muitas vezes são as igrejas que oferecem pertencimento, escuta e esperança. E é preciso admitir que, nesse quesito, parte da esquerda falhou: perdeu a conexão com a linguagem do cotidiano, com os valores populares e com os símbolos que estruturam a identidade de quem está na base da pirâmide. A esquerda institucional, por vezes, desprezou o universo cultural do povo, preferindo a linguagem tecnocrática ou identitária dissociada das dores materiais.
A armadilha das pautas identitárias e a moralização da política
Um dos pontos críticos do fracasso da esquerda em mobilizar setores populares passa pela insistência em pautas identitárias desconectadas da realidade cotidiana das maiorias. Embora legítimas, essas pautas, quando apresentadas de forma isolada e desvinculada da luta material, foram percebidas por amplas parcelas da população como elitizadas, excessivamente acadêmicas ou irrelevantes frente às urgências concretas. A esquerda, ao concentrar sua atuação em questões simbólicas altamente polarizantes, acabou deixando de lado o discurso moral que a direita soube monopolizar.
Jessé Souza aponta com clareza: não foi o combate à corrupção que levou Bolsonaro ao poder ou que sustenta Trump nos Estados Unidos. Em ambos os casos, os eleitores sabiam das acusações, dos escândalos, das contradições. A força desses líderes não está na pureza, mas na narrativa moral que oferecem. A extrema-direita entendeu que a política contemporânea se deslocou para o campo do simbólico e da identidade moral, onde o que conta é a sensação de ordem, justiça retributiva, pertencimento e revanche.
Enquanto isso, a esquerda falhou em articular um discurso moral positivo, calcado na dignidade, na solidariedade e na justiça. Perdeu a oportunidade de traduzir suas propostas em termos éticos e emocionais. O resultado? Foi superada por quem apresentou respostas mais simples, mais viscerais e mais simbólicas, ainda que mentirosas.
Jessé sintetiza esse fenômeno com precisão: “Nunca foi a economia, tolinho!” — frase que carrega, com ironia, o alerta de que a disputa contemporânea se dá também no plano da moralidade pública, do sentido existencial e da simbologia coletiva. A insistência em uma racionalidade tecnocrática ou na liturgia de causas identitárias fragmentadas minou a construção de um projeto comum. Enquanto a direita unificou afetos sob o guarda-chuva da ordem, da fé e do mérito, a esquerda falhou em apresentar uma narrativa de pertencimento popular com potência mobilizadora.
As palavras “cooperação” e “solidariedade”, outrora bandeiras do campo democrático, passaram a soar como sinais de fraqueza ou mesmo como palavrões em muitos espaços da sociedade brasileira — e, por extensão, em boa parte do mundo dito civilizado. Substituídas por “resiliência individual”, “empreendedorismo” e “fé no mérito”, essas ideias foram relegadas a um plano secundário, como se o bem comum fosse um capricho anacrônico. Isso fragiliza qualquer projeto coletivo de reconstrução nacional e explica, em parte, a dificuldade da esquerda em formar vínculos duradouros com as maiorias sociais.
Jessé Souza tem o mérito de apontar essas feridas. Mas como alertam críticos como Ruy Braga, não podemos reduzir o eleitor pobre à condição de massa manipulada. A adesão à direita não é apenas resultado de ignorância ou passividade, mas também de cálculo, percepção seletiva e muitas vezes de crítica à própria esquerda tradicional, percebida como distante ou elitista. A política de ressentimento, tão habilmente manipulada pela direita, se alimenta dessa frustração com as promessas não cumpridas por antigos representantes.
Mesmo assim, os dados insistem em contar uma história: segundo o Atlas da Violência (IPEA, 2023), 77% das vítimas de homicídio no Brasil são negras. O IBGE mostra que mais da metade da população economicamente ativa vive com menos de R$ 2.900 mensais. Não se trata apenas de um país desigual — mas de um país que aprendeu a conviver com a desigualdade como se fosse parte de sua natureza.
O projeto da elite do atraso é sofisticado. Mantém privilégios intactos enquanto difunde a ideia de que qualquer um pode vencer — desde que reze, empreenda e acredite. Essa narrativa permite que se desmonte o Estado e se retirem direitos sob o pretexto de modernização. A população, desamparada, se vê obrigada a buscar no mercado ou na fé o que o pacto social deveria oferecer. A combinação entre neoliberalismo econômico e conservadorismo moral cria um quadro estável para a reprodução da dominação.
Quem vive o cotidiano das ruas, das pequenas negociações, das humilhações implícitas nos olhares e nos silêncios, sabe que não se trata apenas de números. Trata-se de uma guerra por reconhecimento, onde o discurso religioso, o empreendedorismo de ocasião e a retórica da meritocracia oferecem respostas rápidas — ainda que ilusórias.
A esquerda precisa mais do que propostas técnicas: precisa recuperar a escuta, o afeto e a linguagem da esperança. Disputar não apenas a renda, mas o sentido da vida. Porque é quem oferece sentido que ganha a confiança e, muitas vezes, o voto.
Essa disputa simbólica requer ação concreta: disputar espaços de cultura, investir em lideranças populares, criar narrativas que deem nome ao sofrimento e ao mesmo tempo projetem um futuro possível. Reencantar a política não com promessas messiânicas, mas com presença cotidiana e escuta ativa. O desafio não é apenas vencer eleições, mas reconstruir o imaginário popular em torno de valores de solidariedade, justiça e dignidade.
Referências:
- Souza, Jessé. A Elite do Atraso. Editora Leya.
- IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, 2023.
- Atlas da Violência, IPEA, 2023.
- Braga, Ruy. A Rebelião das Massas Empobrecidas. Boitempo.
- Kayser, Erick. “Jessé Souza e o identitarismo”. IHU Unisinos.
