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Houve um tempo em que a diplomacia se fazia no sussurro, nas entrelinhas de um brinde, na sobriedade dos gestos e silêncios medidos. Havia liturgias. E não apenas por vaidade cerimonial, mas porque o Estado, ao representar uma nação, é mais do que a soma das vontades pessoais. Foi assim que, em meados de maio de 2025, o que deveria ser uma visita de Estado marcada por avanços econômicos e diplomáticos entre Brasil e China acabou sequestrada por um improviso de protagonista indevida: a primeira-dama do Brasil, Rosângela da Silva, conhecida como Janja.
Durante um jantar oficial com Xi Jinping, Janja teria solicitado a palavra – e falado. Seu tema: o algoritmo do TikTok e sua suposta condescendência com a extrema direita brasileira, além do impacto da plataforma sobre mulheres e crianças. O jantar esfriou. A etiqueta derreteu. E as manchetes do dia seguinte também: não celebravam acordos bilaterais, cooperação econômica, nem avanços no BRICS. A cobertura jornalística girou em torno da “gafe” de Janja, do constrangimento de Xi Jinping, do silêncio de Peng Liyuan e da reatividade do presidente Lula.
Separando Pauta de Protagonismo
É preciso separar o joio do gesto e o trigo da pauta. A preocupação com o TikTok pode até ser justa. Pode até merecer uma comissão parlamentar, um grupo de trabalho, uma carta à Anatel, uma nota à imprensa. O que não pode é ser disparada como bala perdida durante um jantar de Estado, na direção do chefe de uma potência mundial, em solo estrangeiro, e em momento diplomático delicado. Não é questão de gênero, é questão de institucionalidade.
Que se pergunte: conhecemos algum caso de um marido de chefe de Estado mulher que tenha se intrometido publicamente em assuntos de Estado durante um compromisso diplomático? Não me consta. Nem Denis Thatcher, nem Joachim Sauer, tampouco Philip Mountbatten ousaram tamanho improviso. Porque sabiam, como se aprende no berço da república ou da monarquia, que o Estado é ritual, e o ritual é sagrado.
A Defesa Presidencial
Lula, tentando proteger a esposa, afirmou que fora ele o iniciador da conversa e que Janja apenas complementara. Disse mais: que Janja entende mais de redes do que ele, e que não é cidadã de segunda classe. Pode ser. Mas também não é ministra, nem secretária de comunicação, tampouco negociadora oficial. É primeira-dama. E há, sim, limites nessa função.
O estrago já estava feito. Diplomatas veteranos, em off, chamaram de erro crasso. Xi Jinping, segundo relatos, encerrou a conversa com sorrisos duros. Peng Liyuan, silenciosa, fez da etiqueta um escudo. E a missão oficial, que trouxe resultados relevantes, virou coadjuvante. As manchetes não falaram do comércio, das promessas de investimento, nem da nova rota da seda digital. Falaram de Janja. Da mulher que falou. Da mulher que não deveria ter falado.
Quando Gênero é Desculpa para o Erro
A esquerda feminista, confusa entre empoderamento e bom senso, tentou transformar a crítica institucional em misoginia. Reinaldo Azevedo, sempre agudo, percebeu a desproporção, mas também indicou que talvez fosse melhor que Janja tivesse calado. E se a questão é realmente sobre mulheres, onde estavam suas interlocutoras oficiais? Por que não uma ministra, uma diplomata, uma representante do Itamaraty?
Palco para os Extremos
O episódio serviu como cortina de fumaça perfeita para os extremistas de direita. Eles, que não precisam de munição porque se alimentam do próprio ruído, encontraram ali um palco, um gesto, um slogan. A indisciplina institucional virou pânico moral, e a preocupação legítima virou deboche. Ganhou-se um escândalo e perdeu-se uma conquista.
A missão do Estado não pode ser sabotada pelo impulso de um particular. Não se trata de cercear, mas de conter. Não se trata de censurar, mas de respeitar papéis. Janja, como cidadã, pode questionar o TikTok. Como primeira-dama, deve zelar pela liturgia do cargo, pela imagem do país e pela discrição exigida a quem fala em nome de um chefe de Estado.
Em tempos em que a política parece mais um palco de influenciadores do que um salão de Estado, é bom lembrar que nem toda fala é voz, e nem todo gesto é ato político. Alguns são apenas imprudências que cobram juros altos.
