Todos Querem Amor, Mas Ninguém Quer Abrir Mão do Espelho

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Ela postava todos os dias. Frases sobre luz, merecimento, amor-próprio. Dizia-se forte, intensa, iluminada. Mas chorava em silêncio quando não era notada, quando a notificação não vinha. Forte no feed. Frágil no espelho.

Nunca se falou tanto em amor-próprio e empoderamento. Nunca se viu tanta gente se dizendo “poderosa”, “indispensável”, “muito para pouco”. Os feeds estão cheios de frases que mais parecem mantras autoindulgentes: “me valorizo demais para aceitar migalhas”, “quem quiser que me mereça”, “meu amor-próprio não aceita menos que o ótimo”. Mas, por trás dessas declarações públicas de autoestima, cresce silenciosa uma epidemia: a do vazio narcísico.

Vivemos numa época em que o espelho virou altar. E o reflexo precisa ser perfeito. Ou pelo menos parecer. A performance nas redes sociais transformou a subjetividade em vitrine. O problema é que essa vitrine exige constantes declarações de autovalor porque, no fundo, quem grita que se ama todos os dias está sussurrando o contrário para si.

A psicanalista francesa Colette Soler já dizia: “O sujeito que não suporta a falta tende ao exibicionismo emocional”. Em outras palavras: quanto mais a falta interna grita, mais barulho se faz nas redes.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han foi ainda mais incisivo: para ele, a sociedade atual não é mais repressora, é uma sociedade do desempenho, em que todos querem se destacar, ser desejáveis, ser vistos. O narcisismo digital é, segundo Han, uma resposta à cultura da visibilidade permanente, onde a autoestima se mede em corações e curtidas.

Bauman, em “Amor Líquido”, complementa: os relacionamentos são cada vez mais descartáveis porque são tratados como bens de consumo. “Se não serve mais, troca-se. E se dói, descarta-se.”

E, somando-se a esses pensadores, estão as observações recorrentes feitas por profissionais da área clínica e os padrões visíveis nas relações cotidianas:

  • Gente que exige do outro aquilo que não consegue oferecer;
  • Relações baseadas em projeções e demandas infantis;
  • Expectativas irreais de parcerias perfeitas, quando sequer se reconhece as próprias limitações.

A psicologia já identificou que a geração criada a pão de elogios, sem lidar com frustrações reais, tende a desenvolver traços narcisistas. Segundo Jean Twenge e W. Keith Campbell, autores de “The Narcissism Epidemic”, pesquisas longitudinais baseadas em instrumentos como o Narcissistic Personality Inventory (NPI) mostram aumento gradual desses traços entre jovens norte-americanos nas últimas décadas — dados, aliás, corroborados por outras investigações acadêmicas.

Cabe esclarecer que essa leitura deve ser contextualizada: traços narcisistas não implicam, necessariamente, transtorno de personalidade, mas um padrão comportamental cada vez mais reforçado pela lógica das redes sociais. O próprio NPI é criticado por alguns estudiosos por superestimar traços adaptativos como assertividade. Portanto, os dados são significativos, mas não absolutos.

Não se trata de atacar um gênero, mas de apontar uma cultura que hipersexualiza, hiperexige e hipervaloriza performances. As redes sociais deram palco, mas poucos aprenderam a usar o espelho.

O resultado? Uma geração que fala de autoestima enquanto implode de insegurança. Que pede vulnerabilidade, mas foge do desconforto do autoencontro. Que romantiza o amor-próprio, mas odeia se olhar de verdade.

Mas afinal, o que é o amor?

Para Platão, amar é reconhecer a beleza que nos falta. Para Aristóteles, é querer o bem do outro por ele mesmo. Para Santo Agostinho, “a medida do amor é amar sem medida”. Jesus falou em um amor que ama até o inimigo; Buda ensinou que amar é libertar o outro, e não prendê-lo. Kierkegaard via o amor como dever ético; Nietzsche, como potência criadora e também como perigo de autoaniquilação. Erich Fromm, por sua vez, definiu o amor como uma arte que exige disciplina, paciência, humildade e fé. E Lacan? Lacan, com seu bisturi cortante, dizia: “Amar é dar o que não se tem a alguém que não o quer”.

Cada qual definiu o amor com a lucidez e a sombra da sua época. Nenhum deles o resumiu — e talvez essa seja a melhor definição: o amor, quando é, escapa à captura.

O que se vê hoje, no entanto, raramente carrega qualquer vestígio dessas ideias. O que muitos chamam de amor talvez tenha outro nome: carência, projeção, conveniência, adoração, vaidade, apego, ou fuga do próprio vazio. Talvez por isso tantos vivem decepcionados. Estão à caça de algo que não sabem nomear e que, por vezes, não suportariam encontrar.

E como todo narcisismo, isso cobra um preço. O preço da solidão, da frustração crônica, da impossibilidade de sustentar vínculos duradouros. Como disse Freud: “Aquele que não aceita suas sombras, condena o mundo a carregá-las”.

No fim, a pergunta é simples: você quer ser amado ou admirado? Porque quem precisa de adoração não está pronto para reciprocidade.

E o amor verdadeiro, aquele que se constrói com falhas, com ajustes, com espelhos reais e não digitais, esse não floresce no palco da vaidade. Ele só nasce onde o espelho reflete a verdade.


Por Carlito de Souza

Referências:

  • Han, Byung-Chul. A Sociedade do Cansaço. Vozes, 2015.
  • Twenge, Jean M., e Campbell, W. Keith. The Narcissism Epidemic: Living in the Age of Entitlement. Atria Books, 2009.
  • Bauman, Zygmunt. Amor Líquido. Zahar, 2004.
  • Freud, Sigmund. O Ego e o Id. 1923.
  • Soler, Colette. O que Lacan dizia das mulheres. Zahar, 2005.
  • Roberts, Brent W.; Edmonds, Grant W.; Grijalva, Emily. “It Is Developmental Me, Not Generation Me: Developmental Changes Are More Important Than Generational Changes in Narcissism—Commentary on Trzesniewski & Donnellan (2010).” Perspectives on Psychological Science, 2010.

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