“O homem universal é aquele que não se deixa reduzir à especialidade de um único saber.” — Peter Burke, historiador
No alvorecer do século XX, em uma América marcada por avanços científicos vertiginosos e um fervor modernista que exaltava o progresso técnico acima da contemplação filosófica, um episódio destoava do compasso habitual. Em uma manhã de primavera de 1909, um menino franzino e de olhos atentos atravessava os portões de Harvard. Tinha apenas 11 anos. Seu nome era William James Sidis, e seu destino parecia selado: ser o mais brilhante intelectual de sua geração. Falava mais de dez idiomas, criara uma língua própria, dominava matemática avançada e lia Aristóteles como quem folheia um gibi. O mundo o saudou como prodígio. Mas a história não o acolheu como deveria.
Por trás da cortina da modernidade e de sua obsessão por especializações, repousa a história esquecida dos polímatas — homens e mulheres que recusaram a compartimentalização do saber, mergulhando com igual profundidade em artes, ciências, línguas, filosofia e matemática. Suas vidas são pontes entre mundos, mapas vivos da integração do conhecimento.
O que é um polímata?
A palavra “polímata” vem do grego polymathēs, que significa “aquele que aprendeu muito”. Na prática, trata-se de um indivíduo cujo conhecimento abrange várias áreas do saber com domínio notável. Mas é mais do que isso: é alguém que enxerga conexões onde os outros veem compartimentos. Leonardo da Vinci pintava corpos humanos com o mesmo rigor com que projetava máquinas voadoras. Hipátia de Alexandria ensinava filosofia e astronomia enquanto solucionava equações. E Sidis, mais de mil anos depois, continuaria essa linhagem — ainda que tragicamente marginalizado.
William James Sidis: o gênio esquecido
Filho de imigrantes ucranianos judeus, Sidis nasceu em Boston em 1898. Aos 18 meses, segundo relatos de seus pais e de jornais da época, já lia o New York Times em voz alta.. Aos 8, dominava nove línguas e inventava uma décima — o “vendergood”. Aos 11, Harvard o aceitava com relutância, temendo o impacto psicológico de tamanha precocidade. Formou-se aos 16. Mas foi aí que o silêncio começou.
Cansado da exposição, da exploração midiática e de viver sob o peso de expectativas que ele nunca pediu para carregar, Sidis se viu cada vez mais isolado. O menino que um dia encantou Harvard tornou-se um homem avesso à sociedade, desgastado pelo conflito entre sua sede insaciável de conhecimento e a incapacidade do mundo de acolhê-lo como ele era. Seu retraimento não foi apenas uma escolha de privacidade, mas uma tentativa de preservar sua integridade em meio ao colapso emocional causado pela incompreensão generalizada de sua genialidade. e da expectativa de que se tornasse “o próximo Einstein”, Sidis escolheu o anonimato. Estima-se que tenha escrito dezenas de obras sob pseudônimos, abordando temas como transportes urbanos, cosmologia, história indígena norte-americana, linguística, lógica matemática e filosofia., abordando temas como transportes urbanos, cosmologia, história indígena norte-americana, linguística, lógica matemática e filosofia.
Nunca desejou fama ou reconhecimento. Seu desejo era mais íntimo: refletir, observar e construir ideias longe dos holofotes. Pensar em liberdade — sem cronômetro, sem plateia, sem obrigação de agradar.
A solidão dos que sabem demais
Por que nomes como Leonardo da Vinci sobrevivem ao tempo com aura mítica, enquanto figuras como Sidis afundam no esquecimento? A resposta talvez esteja no desconforto que os polímatas provocam. Eles não cabem nas gavetas acadêmicas, não se acomodam nas grades curriculares. São dissonantes. São livres demais para um mundo que teme o que não pode rotular.
O século XX consolidou a figura do especialista. O engenheiro não deve se meter com poesia. O médico não deve teorizar sobre política. A criança deve escolher “logo” sua carreira. O polímata, nesse contexto, é um erro do sistema. Um erro belo e necessário.
Conectores do conhecimento: outros polímatas esquecidos
Além de Sidis, a história oferece exemplos notáveis:
Santiago Ramón y Cajal, Nobel de Medicina, também foi poeta, fotógrafo e filósofo.
Maria Gaetana Agnesi, do século XVIII, que escrevia tratados matemáticos e filosóficos em latim e grego.
Rabindranath Tagore, poeta, educador, compositor, reformador social e ganhador do Nobel de Literatura — tudo em um só espírito.
O historiador Peter Burke, em O Polímata: Uma História Cultural de Leonardo da Vinci a Susan Sontag, nos lembra que “o futuro pertence aos conectores”. São eles que unem passado e presente, ciência e arte, razão e intuição.
Conclusão: o preço da genialidade integral
Sidis morreu pobre, sozinho e ignorado, mas deixou um legado invisível: a recusa a viver uma vida mutilada pela especialização. Seu drama é o de todos os que ousam saber além do permitido.
Hoje, diante de um mundo fragmentado — em que o sistema educacional valoriza resultados padronizados e o mercado de trabalho exige especializações cada vez mais estreitas —, talvez o que mais falte seja justamente o espírito polímata — aquele que busca, integra e transforma. Não para impressionar. Mas para compreender.
Por Carlito de Souza
A verdadeira genialidade não é a que resplandece. É a que conecta.